domingo, 24 de janeiro de 2021

Trama fantasma


A certa altura do filme de terror O que ficou para trás (His house, Reino Unido, 2020), exibido na Netflix, a co-protagonista Rial pergunta ao marido Bol se ele acha que ela pode ter medo de fantasmas, depois de ter visto tudo que as pessoas (vivas, naturalmente) são capazes de fazer. Bol e Rial Majur são refugiados sul-sudaneses na Inglaterra; em seu país natal, duas facções estão chacinando loucamente uma à outra, e eles só escaparam do horror ao conseguir, fazendo tudo que julgaram necessário, enfiar-se num barco lotado junto com a pequena Nyagak – que, infelizmente, acabou morrendo na travessia rumo à terra da rainha. Do governo de seu país adotivo, o casal recebe um imóvel esculhambado, mas de grande potencial e tamanho, no qual deve bonita e obedientemente se estabelecer cumprindo toooodas as regrinhas, senão não tem oficialização de residência. Logo de cara, no entanto, a casa se mostra muito mais habitada do que é conveniente para um endereço atribuído apenas a duas pessoas. A casa?...

Sim, há fantasmas, o que é uma obviedade e não spoiler – a classificação do longa como terror/ suspense não deixa margens para que se comece a sessão acreditando embarcar num simples drama sociofamiliar, e ainda que o espectador seja notavelmente distraído há de ser sacudido bem cedo: o filme dura pouco mais de hora e meia, não cabem compridas preliminares. A existência de fantasmas é, pois, parte da sinopse. O que se distingue fundamentalmente do grosso das obras do gênero é (digamos, agora com um tantinho de spoilerice) o paradeiro do elemento assombrador, e a maneira como cada um dos corajosos protagonistas se relaciona com esse elemento – maneira que, aliás, mimetiza os respectivos comportamentos diante da (quase) nova nacionalidade e da nova cultura: Bol se considera em his house, procura adotar ao máximo a língua e os hábitos ingleses, enquanto Rial permanece mais leal e dócil à influência do que ficou para trás, embora com extrema força interior e sem desespero. Para ele, os fantasmas consistem em retornos, em coisas que (na sua visão) não devem mais ser evocadas, em ameaças de perder o pouco que foi obtido na Inglaterra; os tormentos de Bol precisam "invadi-lo" – com pesadelos, aparições, visitas –, uma vez que ele é a metade menos voluntariamente introspectiva e mais ligada ao mundo exterior. Para ela os fantasmas estão todos dentro, são todos mil vezes acalentados e íntimos, são dores marcadas na memória e nas cicatrizes, e qualquer nova dor é fichinha perto daquelas ainda sangrantes e paralisantes. Com Rial, portanto, os espectros não são invasivos – são convidativos; sob certo aspecto fazem parte da família, de sua agridoce família de aflições, e podem inclusive se tornar interlocutores em plena mesa da sala. 

Como costuma ocorrer em vidas compostas de trauma e ruptura, a desfantasmização do casal Majur vai requerer o alcance de algum equilíbrio entre ambos; não convém, literalmente, atirar-se nem tanto ao mar – o que foi feito e sofrido pela, na e devido à travessia precisa parar de tentar engolir os motivos de fazê-la; um passado de horror não deve afogar um futuro –, nem tanto à terra – o país de adoção, por mais "pacífico" que seja, não tem todas as respostas nem elimina as marcas deixadas até então. É necessário aos dois companheiros ressignificar sua realidade atual, da mesma forma que o andamento do filme nos faz ressignificar pelo menos dois momentos de interação entre eles: quando Bol diz à esposa que ali poderão começar uma família, ao que ela responde com um olhar de surpresa e censura, e quando Rial acusa o marido de ter esquecido a filha bem depressa, ao que ele, por sua vez, reage com uma angústia quase agressiva. O nó maior só se desata no nós; apenas no ubuntu, no trabalho em equipe, na aceitação das correspondentes cotas de sacrifício, se encontra alguma espécie de apaziguamento, alguma chance de as assombrações desprecisarem se esconder nas paredes. Alguma chance de os buracos da história se fecharem.

No fim das contas, é a "herança" deixada por Nyagak para os Majur, da geração mais nova para a mais velha, que melhor metonimiza o teor do longa de Remi Weekes. Na bonequinha surrada (significativamente loura de olhos azuis, e não negra como sua dona, o que comenta com sutileza um passado e um presente coloniais), mora o símbolo de nossos fantasmas portáteis – que são móveis, porém inadequados para um transporte ininterrupto. A não ser, claro, que andemos somente com a porção deles mais leve, mais resistente ao fogo e mais à prova de qualquer destruição.

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