terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Um elo a mais

Foi autoridade estrangeira que disse, em reportagem do Jornal Hoje sobre a segunda onda covídica pelo mundo: "Qualquer contato desnecessário que você tenha é um elo a mais de uma corrente que pode chegar a uma pessoa vulnerável". Se houver uma ou duas palavrinhas aí readaptadas inadvertidamente, perdão; ouvi de momento e transcrevi de memória; porém o teor, juro, era rigorosamente esse. Anotei a fala por me impressionar, num susto, a realidade quase sufocante em que procuramos não pensar (empenhados por motivos compreensíveis em evitar o enlouquecimento), mas que deve sim ser pensada hora a hora, minuto a minuto, nos dando assim na cara no meio da tarde, se preciso. Mesmo procurando me embolhar o mais embolhadamente no recesso do lar, saindo o minimíssimo possível, levei na cara e ganhei manga coletiva para chupar: se deixamos nossa casa sem urgência ou abrimos nossa casa sem urgência, somos transmissores, pronto. Podemos não pegar o corona – ou ele pode não nos pegar –, a pessoa com quem tivemos contato supérfluo pode não pegar o corona, e sermos ambos transmissores potenciais do corona. Elos distraídos duma cadeia assassina que vai enforcar sempre o pescoço mais fraco.

Nenhuma novidade, nada ouvi que já não soubesse a rodo e contra o que já não procurasse lutar há cerca de um ano. Às vezes a obviedade bate à porta com uniforme inédito, entretanto, ou são os olhos-ouvidos-neurônios que recém-nascem para alguns aspectos do mesmo óbvio. Escutei a declaração num meio ou fim de matéria e tive o calafrio inaugural de imaginar quantos contrabandos negligentes de vírus já não fizemos, quantas coadjuvações no circuito de morte não assumimos, em quantas ocasiões não fomos desleixada carona de corona. É tão estarrecedor (não vim hoje melhorar o dia de ninguém, eu sei) que nossas naturais luzinhas vermelhas de defesa costumam nos proibir entrada nesta sala de pensamento soturno; mas WTF, aqui ninguém é criancinha berrando com os Monstros S.A. que não possa receber visita da verdade. Sim, em cada vacilozito piquituchito estamos possivelmente assinando o contrato de um-elo-a-mais nos quadros da covid, estamos virando degrau a mais rumo ao topo do gráfico.

Na festa a que comparecemos (please, este nós é apenas retórico) quando nos sentíamos formidáveis, uma nossa gotícula contaminada e relapsa foi parar em outro comensal que não usou máscara em casa no dia da faxineira, que só podia contar com a mãe de 76 anos para tomar conta dos três filhos. Na ida ao banco uma semana depois de abraçar feliz-natalmente o vizinho, um nosso espirrito que escapou da máscara e foi dado sobre o caixa eletrônico encontrou a mãozinha e a boquinha do pequeno curioso que acompanhava o pai, que tinha asma braba de nascença. Na corrida de meia hora desmascarada que demos naquela manhã, atendemos animadamente o celular quando cruzávamos com um gari cuja esposa, diabética, estava grávida. Na loja de brusinha em que passamos rapidito após fazer o teste covídico no laboratório ("tem que aguardar uns dias para o resultado, senhora"), demos uma também rápida tossida ao trocar de máscara, que já estava úmida – não vimos, mas foi a dois passos e meio do telefone que fica sobre o balcão do caixa, e que é utilizado pela dona da loja, que frequentemente trabalha como voluntária distribuindo quentinhas aos sem-teto. Um elo a mais, insabido, indesconfiado, inapercebido; um que, sem nós, talvez nunca houvesse.

Parece e é cruel, cruel, cruel, porém fica excessivamente mais cruel não o saber nem dizer, considerando que essa descabeçada ignorância arrebanharia mais vidas em vez de salvá-las. Se a verdade é dama indelicada, espeta agudo e soa demasiado brusca, seja: antes um terrorismo do bem, severo e franco, que melosidades positivas para boi (bota boi nisso) dormir. De "boas" e saltitantes intenções, UTIs de mais pelo mundo já estão cheias.

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