quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Os delicados


Nossa escritora Noemi Jaffe postou lindamente outro dia que "delicadeza não é falar de flores; é fazer bordados na pedra". Bem assim: discursar a esmo do que por si já é delicado não garante doçura, pode mesmo assinalar a proverbial hipocrisia dos que, incapazes de construir suavidade, simplesmente reproduzem o caminho mais óbvio. Qualquer um fala de flores – a delicadeza é fazê-las. A delicadeza é construir o delicado literalmente no duro, abrir com beleza e agulha a trilha só abrível com facão, alcançar que voem dentes-de-leão a partir de arame soprado, germinar semente no cimento. Violento qualquer ser primário e precário pode ser; delicadeza é para os fortes.

Os delicados passeiam em almas as mais rijas costurando ligações impossíveis, conhecem o botão de amaciar feras, sabem inclusive quando feras não são feras – apenas criaturas feridas em seu centro de comando mais íntimo. Os delicados adentram presídios de várias espécies e adivinham ali, com agudeza, todos os Mozarts, Monets, Machados que poderiam ser e que não foram; têm o dom de se fazer vistos com a amorosidade que veem, e têm o dom mais profundamente raro de fazer as gangas brutas se permitirem ver da forma como por eles são vistas. Os delicados basicamente enxergam como quem manipula cristal, enxergam de veludo, com olhar que chega e permanece sem brutalidade, roçando o outro com luvas de pegar manuscrito de há quinze séculos – ainda que a capa seja como aquele livro do universo Harry Potter que grunhe, morde, baba, rosna, ruge quando algum aluno desavisado de Hogwarts tenta abri-lo (como sabemos, aliás, e provavelmente foi um qualquer bruxo delicado que descobriu, o carinho é a única maneira de domar a obra estrupícia). 

Os delicados arrecadam sorrisos do colega ranzinza à custa de longa rega pela mesma regra: todo dia um banho (não agressivo, não esfuziante) de sol. Os delicados desmontam, em dez segundos de entonação bem calculada, o nervoso dos aflitos. Envolvem a criança histérica com um calor de desabá-la num sono hipnótico. Seduzem clientes arredios com a sinceridade da escuta. Servem o melhor cafezinho do planeta sem alterar um isso de açúcar ou de pó. Emitem segurança para o aconchego dos animais mais oblíquos, destrambelhados e renitentes. Abraçam criando conchas de amor capazes de ensurdecer para o lá-fora do mundo, mesmo em quase momentos de bomba atômica. Desinflamam segredos passando-lhes palavras algodãs, mesmo em quase crises supurantes. Insinuam-se pelas dores amenizando-as feito lua, carícia, riacho, aragem, pomada, sons de ninar sem papões nem Cucas, tudo que acalenta sem fazer recear, sem deixar arder. Não trazem cura, mas aplainam o campo para fins de aceitá-la. 

Sim, a delicadeza borda o colorido da alternativa na lixa, na lâmina, na pedra – e vive, no mundo, em tudo quanto medra.

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