segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Somente para meus olhos

Hoje faz 121 anos sabem quem? Bond. James Bond. Não o agente a serviço de Sua Majestade, mas o ornitólogo norte-americano que indiretamente batizou o espião. James, o original, era especialista em pássaros caribenhos e publicou um livro sobre o assunto – livro este que chegou a Ian Fleming, interessadíssimo em observação de aves e papai do (futuro) James fictício. Fleming curtiu bacanamente o nome do autor, para cuja esposa mandou a real: "Ocorreu a mim que esse nome breve, não romântico, anglo-saxão e mesmo assim muito masculino era exatamente o que eu precisava, e então um segundo James Bond nasceu". Consultado, o ornitólogo deu o OK para o xará famoso e ainda ganhou de Fleming um exemplar de You only live twice devidamente autografado (a rigor, devolvido "ao verdadeiro James Bond" pelo "ladrão de sua identidade"). Eis que de repente, como os diamantes, um pacato espiador de aves do Caribe virou eterno.

Eu certamente não passaria nunquita pela experiência, já que meu nome nada tem de exótico ou aventureiro; porém, num exercício da mais completa estapafurdiologia: caso um romancista se achegasse e me propusesse o sequestro do RG para fins de Operação Skyfall, chantagem atômica ou Cassino Royale, toparia eu a brincadeira alter-ega de viver duas vezes – aqui em-minzinha e ali nas páginas, telas e inconscientes coletivos? Duvido grandemente. Por mais que tenha em altíssima consideração o que é ficcional, ou bem por isso mesmo, não gostaria de misturar-me a ele, em especial por receio um tanto maluco de ser inviável desmisturar-me. Sou vampira de histórias, já o comentei; absorvo com ocasionais excessos as variadas leituras que chegam (leituras em amplo sentido, com inclusão de tudo que é visto e escutado); e essa permeabilidade seria, talvez, mais possantemente insalubre se eu mesma estivesse passeando na berlinda, ainda que só nominalmente. Não, não quereria peripécias inventadas, imaginárias que me tangenciassem; não desejaria nada projetado sobre nenhuma espécie de eu que me tornasse minha própria sombra. Nem seria questão de boas ou ruins ficções, seria questão de não poder domá-las – de, independentemente do que é narrado, não controlar a narrativa.

Porque não haveria a menor chance de segurar a tinta derramada, caso fosse qualquer outro o autor; e, embora eu não seja precisamente ninguém, tenho grande apreço por ser ninguém a meu modo, precisamente. Grande apreço por manter o discurso nítido, as ações desambíguas, as posições francas, o trajeto manifesto: nada público, nada contado (até onde meu cabresto atinja) que não esteja o mais claríssimo sob o sol. Também já me declarei, e me rerrepito, preguiçosa demais para me expor a sustentar versões alternativas, a não ser que eu mesma as elucubre diante de alguéns que as saberão alternativas. Ficcionalizo, sim, o dia inteiro e o tempo todo, mas não tenho vago interesse em me fazer ficcionalizada para outros olhos; divido a vida entre os pudores de dizer-me como me sei e de saber com critério o que é coisa que se diga.

Podem acusar-me de às vezes ostensiva além da conta, às vezes too distante. Mas para o mundo é o bastante.

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