domingo, 10 de janeiro de 2021

Dias de trovão


Querem um privilégio branco e classe-médio? Eu ouvir trovões ao longe neste pesadume de tarde carioca (cinza, abafada, estufosa) e não me atemorizar, antes pessoalmente gostar dessa expectativa elétrica que transforma o dia mezzo ensolarado, mezzo plúmbeo numa antessala de festa – sendo a festa um formidável, acachapante temporal que há de despencar mais hora, menos hora. Noutro dia recente, de clima similar, foi que oficialmente me dei conta deste horror: para mim é uma alegre atmosfera aguardante, grávida de vésperas, até que o toró desabe com sua paixão fantástica, enchendo o momento de novidade ruidosa e uma como que corrente de vizinhança, já que a fúria do elemento obriga a que se larguem atividades individuais e se volte a atenção suspensa para o show coletivo. Sim, horror, horror – porque para um universo inteiro de gentes os trovões trazem impressão bem outra, proporcional à bem outra corrente que se forma: muitos, muitíssimos não poderão ser apenas plateia esteticamente interessada no show coletivo, muitos sabem perfeitamente que não haverá segurança nem janela, nenhuma espécie remota de camarote, e sim invasão e hecatombe e perigo e perdas perdas perdas. Não é fato novo (o que NÃO o classifica como normal, vale grifar e gritar), mas até então eram a violência específica da chuva e seus depoises que me dissecavam pri-vi-lé-gio no ouvido d'alma, e agora a própria diferença de expectação berra loud and clear. Uns aguardam o aguaceiro, uns não conseguem se guardar dele; a sensação de naufrágio é titânica.

Nossa estrutura social disparatada, kafkiana, despautérica se manifesta na geografia e gera, para telejornais, aquelas cenas lamacentas que sangram: pessoas tanto de corpo como de coração arrastado pelo furor da enchente, hesitando entre desilhar-se no último segundo e tentar reter com os braços o que possuem dentro de suas paredes – paredes estas que não raramente desmoronam, feito oferenda obrigatória para um Kraken pluvial cuja maior concessão é não matar. Quando o Kraken (engordado a poder de muita dieta desequilibrada) não mata, esfola; estupra as memórias engavetadas nos armários, inutiliza as fotos, devora identidades mastigando os documentos, despe os direitos mais básicos enlameando as roupas, acaba de isolar os isolados devastando celulares e computadores, rouba as menores prerrogativas de conforto emporcalhando, enxovalhando, curto-circuitando eletrodomésticos e móveis. Não saciado, o monstro vem e come meios de vida – são imbastantes as vidas mesmas: freezers, bebidas, comidas, estoques de loja, cadeiras e mesinhas de bares, equipamentos mil dos pequenos negócios de bairro são também ensanguentados de desolação e lama, tornando inda mais precárias as reações possíveis. Passa no jornal todo, todo, todo ano; a gente vê do lado de cá do privilégio e morre um pouco; porém nem sombra, nem lasca, nem fragmento do MUITO que morrem os mártires da desigualdade a cada disparar da correnteza. E a cada não disparar da correnteza.

Digo somente o ululante e não quero biscoito por dizê-lo – quem está do lado de cá do privilégio, por sinal, tem nem que abrir a boca para querer absolutamente nada; com uma justa exceção: quero com sanha, gana e encarniçamento que todos os que hoje não têm, ou que amanhã já não terão, venham o mais cedo possível a não precisar querer nada. Minto, aliás, ou omito; que não precisem querer nada elementar, essencial, crucial, a fim de estarem com vida e coração livres para desejar profundamente tudo o mais. Nosso papel de moradores sem medo da chuva é o de não aceitar sob nenhuma hipótese, no mais intrínseco d'alma, que haja alguém forçado a tê-lo. Não o não aceitar que olha a TV horrorizado e triste, comenta que dá nisso as pessoas da cidade toda (e de toda cidade) jogando lixo na rua, vira para o outro lado e se põe a discutir os gols da rodada; esse não, mas sim o não aceitar com sangue nuzoio pra cobrar prefeito, espremer autoridade, agitar abaixo-assinado, tretar em cada ocasião viável contra políticas que cavam abismos em lugar de nivelar trajetos. O não aceitar que gudunha o pescoço dos responsáveis e não larga, demanda, insiste, fiscaliza, incomoda, denuncia, mete dedo na cara, escreve textão, espalha manifesto, faz escarcéu no RJ-TV, é enfim um baú de indignação enchendo o saco de quem interessa, com a força do ódio. Reminto: ódio não cria bulhufas; esse chato de galocha que tanto se joga na construção e na reconstrução só pode ser seu exato oposto.

Um que manja das correntes mais fortes.

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