sábado, 9 de janeiro de 2021

Sob pena


É engraçado Thomas Mann haver declarado, em "Tristão", que "o escritor é um homem que, mais do que qualquer outro, tem dificuldade para escrever". Engraçado mas verdadeiríssimo; enquanto todas as pessoas sãs lançam good-vibemente as palavras ao papel ou à tela, com o preciso objetivo de gerar compreensão (e se uma sobra ou ausência de acento, se um tropeço ortográfico não impede que o leitor fique sabendo o que deve saber, ótimo: bem está o que bem acaba), o escritor sofre até para redigir bilhete de que está indo à padaria. Estou indo? vou? irei? não, mas no momento da leitura eu já fui – ou terei ido? Assim formalzito mesmo, "à padaria", ou "na padaria" que tem o despojamento do erro mais certinho para bilhete? ou "ali na padaria"? ou "lá à padaria"? não, á-à definitivamente não presta. E assim por minutos, horas, esgota a fornada, sai mais fornada, esgota outra fornada, o cacete da padaria baixa as portas e o infeliz do escritor está lá, cavando o Nobel com três palavras post-itadas na geladeira. AND com fome.

Exagero, mas só um pouco. Mui raro haver escritor que não seja raça atormentada pela escrita, que não se pesadele inteiro com a suspeita de que seu protagonista anda dois tons acima ou abaixo do que originalmente andava, que não meta um Ctrl+L ou Ctrl+F de 6 em 6 minutos por desconfiança de que variantes daquela palavra vêm se multiplicando como gremlins molhados, que não refaça uma e duas e três e quatro e vinte e oito vezes a pontuação dum trecho pleno de quebra-molas – parêntese primeiro e depois travessão? vice-versamente? dois-pontos antes, ponto e vírgula em seguida? tudo ponto e vírgula? dois-pontos, que é mais solene e anunciante, e mais adiante um pacotão de parêntese? –, que não dê com a cabeça na parede (metaforicamente, em nome da sobrevivência e boa saúde – inclusive da parede) porque é aquela e só aquela palavra que se encaixa como luva em duas passagens insalubremente próximas. Há os que se torturam menos, sem dar de comer a neuras demasiadas: termos se repetirão, who cares?, ninguém vai fazer levantamento estatístico; há os que se torturam a ponto de catalogar em sonho (se dormem) conjunções outras, sinônimos fartos, construções alternativas; não há os que não se torturam. Ou torturem?

(Supondo que eu possa usar, pelo menos nestas bandas lugarzitas, o crachá dos escritores,) tem muito a ver com isso a kamikazerie da postagem diária: texto que gregoriamente "não dura mais que um dia" também quase nada amofina, escrita que rola não cria caraminhola. Assim como a noblesse dos antigos, o tempo oblige e não oblige pouco, é batedor de pé e turrão, porém justo; anexo às 24 horas que concede, concede um álibi gordinho para uma boa desencanação, um vale-dessofrimento. Quem pode se impor sofrer com dignidade por um texto já-jamente esquecido e substituído, segundo as regras do Dia da Marmota? Nada, nada, o tempo ruge e a Sapucaí é grande, só há desculpa e espaço para amargar o mínimo do mínimo e depois mandar o filhote ninho afora, com as asas que tiver no momento e bem à moda do velho comercial: toma aqui este Bilhete Único, minha filha, vai ser feliz.

Porque para a angústia de escrever, acha-se jeito; encontra-se meio de torná-la opcional (breve, ao menos) – enquanto a alegria de ter ou o vácuo de não ter escrito se fazem compulsórios. Pequenos mundos implodem em cada texto que não se tece, feito flor inascida, memória invivida, chuva inderramada; há um completo ecossistema de entendimento natimorto, como Miguel Esteves Cardoso resume fantasticamente: "Escrever é uma maneira de pensar que não se consegue pelo pensamento apenas. Todos os constrangimentos sintáticos e gramaticais da escrita, em vez de nos reprimirem, levam-nos a encontrar frases que não existiam antes de serem escritas, que não podiam existir de outra forma". Não, o que nos habita na competência de papel ou tela não existe de outra forma, e nenhum perfeccionismo está autorizado a matar qualquer materialização de infinitos particulares tentantes de irromper da casca. Que não seja Nobel, ou mesmo fama – mas que seja escrito enquanto cure.

Nenhum comentário: